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domingo, 15 de outubro de 2006

Barreto disse

Não abundam na imprensa portuguesa colunistas que me cativem. Contam-se pelos dedos, não importando se a culpa é minha ou dos colunistas. O Público, que é, apesar de ainda por lá escreverem duas ou três criaturas intragáveis, o melhor jornal de Portugal, está bem fornecido de colunistas cuja leitura é obrigatória : António Barreto, Vasco Pulido Valente, Maria Filomena Mónica. A coluna de António Barreto é publicada ao domingo. Antes de reproduzir um pedaço da sua crónica de hoje, lembro, em síntese, o currículo do senhor : politicamente, foi deputado à Assembleia Constituinte (1975), Secretário de Estado do Comércio Externo (1975-76), Ministro do Comércio e Turismo (1976-1977), Ministro da Agricultura e Pescas (1976-1978) e deputado à Assembleia da República (1985-1991) . Confesso que não conheço a obra feita, que ignoro a validade das suas decisões enquanto membro do Governo, mas acredito que as suas intervenções no Parlamento o não envergonham. Academicamente, Barreto atingiu o brilhantismo. Doutorado em Sociologia, investigador e professor, Barreto é um dos responsáveis pela excelência do Instituto de Ciências Sociais e foi um dos coordenadores do monumental Dicionário de História de Portugal, obra de consulta permanente, destinada à eternidade.
Ter preferido o exílio da Suíça à possibilidade de combater na guerra do Ultramar, ter sido destacado nome do Partido Socialista, não diminuem a consideração, o gosto e o proveito de o ler.
Barreto é uma referência para quem gosta e precisa de aprender, para quem tenta pensar por si próprio, para quem a cidadania é um permanente estado de atenção pelas coisas das res publica.
Felizmente para nós, Barreto abdicou das partidarices e das politiquices, para se concentrar na Universidade e na intervenção cívica.
O seu Retrato da Semana de hoje, dedicado ao primeiro-ministro, é, para além da prosa deliciosa, inteligente, frontal e demolidor. Como Sócrates é o chefe do Governo, Sócrates é um homem muito importante. Barreto diz-nos:

O primeiro-ministro tem jeito. Talvez mesmo talento e intuição. Decidiu, desde o primeiro momento, surpreender e tomar a iniciativa. Nunca ir atrás do acontecimento, mas provocá-lo. Para tal escolheu um método: designar o adversário, denunciar um privilégio, tomar uma medida, atacar com uma lei. Tudo isto tendo ao seu serviço uma inédita concentração de poderes e uma imbatível organização de informação, mas reservando sempre para ele o ínicio da operação e o anúncio da surpresa.

Depois de enumerar os alvos de estimação de Sócrates, Barreto, nunca maniqueísta, toca no ponto decisivo:

Reconheça-se que, entre tantas medidas e no meio desta pletora de intenções, há muito que se aproveite. O controlo da despesa pública, a poupança no gasto, a austeridade nos serviços públicos, o remendo da Segurança Social e a ordem nas escolas, por exemplo, implicam dispositivos e determinações, cuja bondade, geralmente imposta pela necessidade, é indiscutível. Mas, com o tempo, tem-se também percebido que a técnica do primeiro-ministro se tem limitado ao superficial. Nunca ir até ao fim parece ser a sua regra. Ferir um pouco tudo e todos, mas nunca ir ao fundo das coisas, pois é aí que se fazem os inimigos irrecuperáveis.

Assim, por temperamento ou estratégia, Barreto acha que Sócrates, a quem chama o mestre das escaramuças, está condenado a nada reformar. Quatro anos são escassos para que se consiga mudar e fazer sentir os resultados das mudanças. Apertado pela gula da máquina partidária, que reclama ganhar eleições e espera privilégios, Sócrates, envaidecido pelo poder, afeiçoado ao poder, preferirá o efémero e o remendo à imposição das certezas que dilaceram e que o poderiam elevar à categoria de estadista. Sócrates, querendo não alienar nem gregos nem troianos, querendo privar com deus e o diabo, acomodar-se-á à triste incapacidade de agarrar a oportunidade de grandeza que os tempos exigem e lhe oferecem:

Como sua não seráa criação de órgãos externos de controlo das universidades. Um código severo de incompatibilidades na acumulação de funções públicas e privadas na educação e na saúde não será aprovado por si. E a proibição de passagem promíscua de cargos públicos para empresas privadas e públicas ou vice-versa não será decretada por ele. Como não será ele que acabará com as nomeações por confiança política. Nem imporá prazos aos magistrados judiciais e aos procuradores do ministério público. Não será capaz de acabar com a perpetuidade do emprego público. Nem saberá tornar muito mais flexível o mercado de trabalho, como não desejará dar um pouco mais de garantias aos trabalhadores precários.