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terça-feira, 10 de outubro de 2006

Ser arquivista é

Ser arquivista é, por exemplo, tornar possível o acesso rápido e fiável à informação gerada por organismos públicos ou privados no exercício das suas actividades: produzindo inventários ou catálogos ou índices. Ser arquivista é também, quando existem os necessários recursos financeiros e humanos, reproduzir parte dos documentos de um qualquer arquivo: edições de correspondência entre importantes figuras públicas ou digitalização de fundos documentais acessíveis a partir da Internet. A primeira é mais comum e mais barata. A segunda é o sonho de qualquer investigador que não tenha medo de trabalhar em casa.
A mal frequentada Assembleia da República - onde nunca falta dinheiro e a excelência arquivística se pode praticar - e o adorável Arquivo Nacional da Torre do Tombo - onde falta dinheiro e por isso não falta trabalho importante para fazer, têm digitalizado pedaços de alguns dos seus fundos documentais. A Torre decidiu digitalizar, entre outros conjuntos, os quase ilegíveis Diários de Salazar; a Assembleia digitalizou as colecções impressas das sessões do parlamentarismo português, desde a Assembleia Constituinte de 1820 ao Parlamento da nossa ditosa III República.
Eu, que não tenho e nunca terei os recursos e as obrigações de qualquer uma das supracitadas instituições, mas vou gostando do mundo dos arquivos, reproduzirei a seguir um dos documentos cuja cópia hoje obtive. Trata-se de uma carta enviada por Humberto Delgado a Oliveira Salazar, em Janeiro de 1949. Humberto Delgado estava em comissão de serviço em Montreal e Salazar preparava a eleição presidencial de 1949, que elegeu o Marechar Óscar Carmona para mais um mandato de 7 anos. A carta não é lacónica, e parece-me interessante, ajudando a conhecer mais um pouco o famoso general: tem reverência, tem queixumes, tem a lembrança dos gloriosos dias do Secretariado da Aeronaútica Civil, tem elogios, tem falhadas tentativas de humor. Actualizei a ortografia e corrigi um ou outro erro gramatical.

AOS/CP - 95

Senhor Presidente

Mão amiga acaba de me enviar por via aérea o jornal com o discurso de V. Exc.ª no Porto.
V. Exc.ª recebeu decerto centenas de cartas e daí, provavelmente, ao ver do que esta trata, nem a lerá, pelo menos por falta de tempo.
No entanto escrevo-a para dizer quanto me sensibilizaram certos passos do discurso. Notáveis as duas deduções que terminam, uma "sou um homem independente"; outra "sou um homem livre".
Um convencional com poucos amigos - talvez porque no serviço os trato sensivelmente por igual com os outros - conhecido por V. Exc.ª creio, como homem pouco rasteiro, julgo não tomará esta carta como a rotina do funcionário ou o salamaleque do cortesão.
De resto, um pouco como V. Exc.ª, ganhou os galões por via direita e sem coleira ou coleira folgada, de mais quando V. Exc.ª parece avisar que se vai embora, muito lamentaria se nesse sentido a tomasse.
Não, esta carta mesmo, é muito mais para o homem, Dr. Salazar, do que para o Presidente do Conselho, embora não seja fácil definir onde acaba um e começa o outro.
Servi duramente, apaixonadamente, mais de 10 anos, com V. Exc.ª e demiti-me ( eufemismo de V. Exc.ª preparou-me a exoneração) e saí com um frio "zelo e dedicação" na portaria. Não guardo a mais pequena reserva pelos indícios de que não serei completamente a seu contento, a despeito de começar ridiculamente com 4 adjuntos e 4 funcionários de carreira, e ter deixado um vasto embrião duma obra e aberta a linha imperial - sonho de anos.
É a vida. Há que aceitá-la.
As qualidades, a honestidade do Homem que presidia ao Governo - e que até aceitou de boa mente que eu lhe arruinasse um dia de guarda( o de Natal de 1946, salvo erro) por causa dum avião francês que pedia para parar pelos Açores - salvou tudo o mais que nos fira por nos parecer injusto ou menos justo.
Em resumo: se ainda fosse de chorar, os olhos ter-se-me-iam humedecido ao ler a prosa forte do discurso.
É de Homem: claro, concreto, analítico, franco e até honestamente orgulhoso.
Tudo tem defeitos, desde os homens aos regimes. Parece ser uma lei divina para nos forçar a trabalhar. Mas, apesar disso, mesmo para os que sabem que é o sentimento e não a lógica que governamo mundo da política, faz bem ouvi-lo declarar, ao mesmo tempo que se diz sinceramente ter-se feito uma tentativa de impôr a lógica, o bom senso, o sentido das realidades, a adaptação variável a cada país e a cada época de governo que sem ser analiticamente o melhor, é um dos que praticamente trouxe palpáveis resultados internos e externos.
Através de uma outra carta que recebi (de donzela, amiga da casa, que pela idade acaba de conquistar o direito ao voto) avalio da efervescência que vai pelo país. Diz a donzela, culta, fazendo filosofia e um pouco de literatura, que o seu"espírito inquieto" (como o dos passarinhos) "oscila à procura da claridade" (apesar de tanto sol haver no nosso país..) e deseja ouvir-me para lhe esclarecer (não esperava eu, sinceramente, ter de dar consultas grátis nesta matéria).
Respondi-lhe sucintamente que o diabo nestas coisas era a experiência das democracias post-guerra evolucionarem rapidamente para sistema análogos aos do fim da República espanhola, durante a qual, em Valência, o comité revolucionário levou o seu alto espírito de LIBERDADE a passar "vales para una noche para una novia"a fim de liberalmente dar conforto moral ou físico, às mílicias republicanas, que pelos vistos se esqueciam da liberdade de vontade de metade do género humano: a metade frágil...
Que aplicasse el cuento, a donzela.
E linda. Estou tendo o despeito que V. Exc.ª um dia apontou - dessa vez parece-me que injustamente : exuberante.

Respeitosos cumprimentos

Que Deus guarde V. Exc.ª

Humberto Delgado