Não falta quem considere que o tempo da acentuada separação ideológica passou à história: putativamente, os imperativos da implacável concorrência da economia mundializada e os permanentes fundamentos jurídico-administrativos de qualquer Estado, roubaram pertinência às discussões da filosofia política, aproximaram doutrinas, diluiram diferenças programáticas, converteram inimigos irredutíveis em cordiais adversários que podem consensualizar posições.
A realidade parece confirmar a parcial verdade destes pressupostos. Mas a pragmática adaptação dos agentes políticos às duras complexidades dos tempos que correm não elimina a utilidade de assinalar o que ainda os distingue. Se a política é a
arte do possível, muitas possibilidades de estudo existem para a definição e a decisão políticas, áreas onde a inteligência e a liberdade de escolha podem e devem exercer-se.
Este artigo tem a finalidade de veicular uma visão da esquerda portuguesa substancialmente distinta e antagónica das visões que as diferentes esquerdas difundem sobre a esquerda. Quem o escreve tem dois méritos: não é, nunca foi e nunca será adepto da esquerda, soube evitar o estéril desgaste de odiar a esquerda.
Para se tentar compreender e conhecer a esquerda portuguesa importa recuperar o seu passado recente, importa lembrar o período que marca a fundação do domínio institucional e cultural da esquerda sobre Portugal.
É incontestável que em Portugal a esquerda manda desde 1974. O golpe militar de 25 de Abril foi por ela planeado e executado. Ter confiado a Spínola a liderança do MFA e ter amalgamado no MFA militares de diferentes orientações políticas é pormenor que não anula o fundamental esquerdismo, consciente ou não, dos golpistas a quem o regime autorizou o triunfo.
E autorizou porque, Marcelo, avesso a repressões, mesmo que cirúrgicas, coagido por uma urgência temporal que não facilitava a reflexão, rodeado de gente dúbia, confiante na capacidade moderadora de alguns generais, ao não permitir que a GNR e a PIDE/DGS jugulassem o restrito movimento, confessava o seu cansaço e o do Governo. Altivamente recusou lutar, como se a impertinência corporativa dos militares revoltados o tivesse convencido da inutilidade de continuar a pregar no deserto de uma elite pouco segura do que queria e confusa sobre o que não queria. Deste desnorte mental, destas dúvidas que desmoralizam e paralisam, se aproveitou a esquerda, impregnada de audácia, euforia e certezas.
Porque a esquerda não comunista tem aprendido e evoluído ao longo destes trinta anos de democracia partidarista convém lembrar como era a esquerda portuguesa em 1974.
Dividida em múltiplas organizações de variada implantação social e importância quantitativa, fragmentada em partidos que louvavam a ditadura do proletariado e partidos que admiravam as meritórias realizações da social democracia europeia, a esquerda pulverizava-se e polemizava-se em minúcias estratégicas mas possuía elementos decisivos para uma unidade determinante que conduziu à fulgurante vitória. A partilha de objectivos comuns e de um minímo de sólidos valores ajudaram a esquerda a conquistar o Poder.
O que unia então a nossa dinâmica esquerda ? Primordialmente, a esquerda tinha e vivia com fervor um património sentimental composto pela absoluta rejeição do Estado Novo, pelo sofrimento das perseguições policiais aos militantes mais activos, pelas frustrações que os sucessos do regime provocavam, pelas expectativas desfeitas das campanhas eleitorais invariavelmente ganhas pelos candidatos da União Nacional. O frentismo antifascista fantasiara o monstro da ditadura, unia a esquerda nos seus devaneios utópicos e atenuava a importância das suas diferenças. Cheia de rancores e desejosa de vingança, a esquerda odiava abertamente. E se alguns se contentaram em decretar o exílio dos derrotados, outros sonharam fazer derramar o sangue fascista.
Ora quando se odeia, os ânimos exaltam-se. Coisa dispensável porque a queda do regime já inundara de felicidade muita gente. Mas os nossos emotivos esquerdistas eram insaciavelmente dados à excitação mental. Ao ódio juntaram as alegrias de uma secular fé redentora. O resultado não poderia ter sido outro: os dirigentes e os militantes eram camaradas pouco preparados para sensatamente administrarem a realidade. O voluntarismo entusiasta esmagou as possibilidades da lucidez analítica que a gestão dos assuntos públicos sempre exige: estavam criadas as condições para que os disparates acontecessem a uma frenética cadência.
Para além de gritar invectivas e ameaças, a esquerda vivia o extasiamento de berrar sem obstáculos o seu marxismo-leninismo e o seu socialismo democrático. O primeiro merece mais atenção porque logrou, apesar de tão minoritário, efectivar parte substancial do que preconizava. Continua a causar alguma admiração que pessoas inteligentes ainda acreditem na na bondade da doutrina marxista e na viabilidade de Estados que dela se reclamam e nela se inspiram para desgorvernar diferentes povos. A neurologia tem explicado as capacidades e o funcionamento do cérebro humano, mas jamais conseguirá encontrar as provas que permitam compreender o fenómeno. A ingenuidade e a revolta, próprias da adolescência, não bastam porque abundam comunistas de idade avançada. A ideia da genérica malignidade de qualquer comunista é também imprestável porque muitos comunistas são generosos e estimáveis.
Quando dizemos estranhar e lamentar que o marxismo seja tão arreigadamente professado e tão facilmente propagandeado, pensamos nos seus dogmas e nos seus resultados práticos.
Sem pretensões de profunidade, porque a matéria tem sido amplamente estudada por brilhantes académicos, o marxismo acredita ...
Aproveitando a embalagem revolucionária que dinamizou e explorou, apoiada nas conquistas políticas que logrou impôr ao país, a esquerda, cegamente orgulhosa de si mesma e convencida da sua superioridade moral, foi ditando as suas regras, prescrevendo as suas manias, infligindo as suas aversões. Tão forte era, tão forte se sentia, tão pouca resistência encontrou a sul do Douro, que a nossa esquerda se permitiu o luxo de, imitando o império soviético, distorcer o passado, inventar uma realidade que não existia, prometer o utópico paraíso da sociedade sem classes. Desfraldando a bandeira do democratizar, descolonizar e desenvolver, a esquerda foi a campeã da demogagia, do qual abusou sem escrúpulos.
As suas promessas, mentiras e calúnias, foram pródiga e impunemente praticadas. Animada do seu típico optimismo, a esquerda contou, na sua obra de destruição e de delírio, com a colaboração da direita. Assustada com o histerismo das massas aduladas, atarantada com as exigências eufóricas da esquerda, diminuída pelo seu absurdo sentimento de inferioridade, a direita encolheu-se de medo. E cheia de medo, calou as realizações que tinham desenvolvido e fortalecido Portugal. Consentiu a diabolização de Salazar e Caetano. Negou os seus valores essenciais e desmintiu a sua existência. Com a excepção de um punhado de lúcidos que não se rendeu, a direita suicidou-se. Cabem-lhe culpas que jamais expiará: o PSD aprovou a Constituição de 1976 e o CDS contra ela apenas tenuemente protestou com uma inverosimil abstenção.
Com início de reinado tão avassalador e programaticamente bem sucedido, a esquerda instalou-se com conforto no poder. E actuou ao sabor dos seus desvarios. Arruinou a disciplina militar, dividindo as Forças Armadas e fazendo de numerosa tropa um desleixado bando de papagueadores de fantasias. Converteu às três pancadas juízes e autarcas. Tomou de assalto a imprensa e os antigos sindicatos corporativos. Como não sabia o que era governar, saneou milhares de competentes servidores do Estado, prendendo muitos sem culpa formada, substituindo-os por gente fanática ou medíocre. Trocou a qualidade pela quantidade, a experiência pela impreparação. A análise ponderada pela precipitação. Desorganizou serviços e aumentou as despesas públicas. Empobreceu o Estado que encarou como coutada sua, propriedade para pagar favores e promessas, para saciar clintelas e vaidades. Democratizou as universidades, instalando o facilitismo, tolerando as lutas entre estudantes, diminuindo o prestígio dos professores. Atarefada com as excitações e as torpezas das lutas partidárias, a esquerda negligenciou a prosaica administração, piorando-a dramaticamente: prova-o a singular aberração de engordar o Estado ao mesmo tempo que reduzia Portugal à sua pequenez europeia. Por pragmatismo e necessidade; e como era servida por algumas distintas inteligências, a esquerda não inutilizou toda a obra do Estado Novo. Aboliu oficialmente o corporativismo que marchava em salutar e prometedor caminho, mas alargou a Previdência, convicta da bondade do acto e escrava das suas promessas.
A organização económica do país e a a questão ultramarina macularam irremediavelmente o regime. A inevitável integração europeia salvou-o da dissolução mas não o redime. Conseguida após 1o anos de governos instáveis e frágeis, a adesão à CEE foi a tábua de salvação para um pobre desesperado. Sendo indesmentível que a Europa tem tornado possíveis as obras públicas, a qualificação dos recursos humanos e a renovação tecnológica de milhares de empresas, importa não esquecer que ela consagra a nossa dependência e que tem sido assaz desaproveitada.
(Como vão sendo horas este texto será retomado e concluído brevemente. Promessa de menino deseducado pelo ensino da esquerda ).