Este blogue vai ao passado buscar inspiração, traz ao presente portugueses que, como disse o poeta, da lei da morte se libertaram. Porque este blogue não esquece e respeita os mortos, lembrar tão admiráveis patrícios é sempre justo e oportuno. Segue-se o que João Rialto, pseudónimo de Guilherme de Azevedo escreveu, em Janeiro de 1882, sobre Camilo Castelo Branco na obra-prima de Bordalo,
Album das Glórias, há pouco reeditada pela editora Frenesi.
Para quem quiser saber mais sobre Rafael Bordalo Bordalo, recomenda-se a consulta das seguintes páginas Web:
http://purl.pt/273/1/visite-nos.html http://www.museubordalopinheiro.pt/Camilo Castelo BrancoAinda nenhum homem em Portugal pôs ao serviço de uma obra de arte maior quantidade de fluido nervoso, de sangue, de paixão, de febre, de gargalhadas e de prantos, do que esta figura original que o Album das Glórias apresenta hoje ao leitor, picado das bexigas - e dos adversários - com trina anos de luta e de renome lietrário, a quatro volumes por ano e oito descompusturas por mês, a pesarem-lhe sobre os ombros, sem que o seu frágil corpo gema, o seu estilo vigoroso vergue, ou o seu temperamento fogoso arqueie!Não lhe chamemos o nosso primeiro romancista, à maneira do noticiário da metrópole e ilhas adjacentes; digamos apenas; aqui está um temperamento, aqui está um homem!Ponhamos o homem num meio mais vivo, mais largo, mais agitado, mais sanguíneo, e teremos um lutador como Veillot, como Girandin, como Rochefort, com as tendências místicas do primeiro, os ímpetos nervosos do segundo e a verve... de todos os três.Em Portugal, à sombra plácida da Constituição e respectiva mancenilha adicional, Camilo, antes d etudo, é manifestamente o autor mais produtivo, e que maior soma de matéria impressa oferece ao consumo público, o que mais atende às exigências da exportação. Anos há em que ele, sozinho, surte o mercado interior da letra redonda, fazendo a ventura dos livreiros nacionais e entretendo os ócios dos que ainda tentam decifrar os mistérios da palavra escrita.Contestam alguns que ele seja um romancista moderno. É preciso que nos entendamos. Balzac morreu há muitos anos e todavia Victor Hugo, escrevendo hoje é mais antigo do que ele; donde se deduz que semelhante expressão não significa nada, nem caracteriza coisa nenhuma. Um romancista diferente de Zola é-o evidentemente Camilo Castelo Branco, pela simples razão, além de outras, de que um é um paciente, o outro um agitado. Um trabalha com pertinácia, o outro simplesmente com a febre, estados distintos dos quais resultam obras de arte diversas.Ah se Camilo, em vez de correr noutros tempos aventuras nos outeiros dos conventos, tivesse nascido caixeiro como Zola, ou como Daudet, aprendendo ao balcão os processos metódicos que hoje constituem a fortuna daqueles dois grandes mestres da escola experimental, como ele nos teria dado apenas meia dúzia de volumes, bem ordenados, bem sólidos, bem discretos, em vez dessa montanha prodigiosa de livros no ventre da qual chora a musa da elegia e retine a gargalhada de Mefistófeles!Ele tem seguramente aberto duzentos brasileiros do Minho, e analisado em cada volume o órgão de cada um. Se porventura se limita a abrir um comendador único, o seu prodigioso talento haveria legado à pátria um livro imperdurável.Mas a pátria pagar-lhe-ia, porventura, esse livro em glória ou em dinheiro!? De forma alguma. E aqui está por que o romancista, tal qual nós o vemos, foi feito por nós, pelo nosso meio, digno filho da nossa raça, perdulário e pitoresco como a sua nobre mãe!Os seus livros são hoje mais do que os seus anos; os seus lanços romanescos, mais do que os seus cabelos brancos. Raro escritor numa língua terá atingido, nas lavores do estilo, a contestura sóbria, mágica e resistente que ele tem conseguido, sabendo amoldar a palavra a todas as exigências do assunto, forçando-a, naturalmente, a todos os brinquedos da imaginação, podendo à vontade ser quinhentista por convicção e realista por troça, parase divertir com a indignação literária dos outros e ter ensejo de se medir depois com eles em combate singular.Porque a sua natureza é assim: gosta da batalha, do ruído, do imprevisto, atrai-o o desconhecido. O romantismo do nosso tempo chama-senevrose. Ele, ao lado do nosso sistema constitucional, possui um sistema de nervos suficientemente impressionável para ser um artista de hoje, capaz de abranger com a sua mão febril todo o teclado das paixões, susceptível de percorrer por inteiro toda a escala do sentimento humano.Tal é Camilo Castelo Branco numa caricatura acompanhada de cinquenta linhas. Quem o quiser estudar melhor contemple-o e releia-o em cem volumes.