Tenho lido e ouvido opiniões várias sobre a famigerada crise do sistema político que nos governa. Dada a proximidade da brincadeira eleitoral, as opiniões concentram-se ma análise da suposta miséria técnica dos futuros deputados e na miséria moral do seu processo de selecção feito pelos partidos. Nunca se escrevera tão contudentemente contra as práticas dessas pouco recomendáveis organizações. E quem mais as critica são justamente aqueles que acreditando na utilidade da sua acção, engolindo sapos, sem dependerem dos partidos para ganhar a vida, com eles colaboraram, por eles foram eleitos: Pulido Valente, António Barreto, Vicente Jorge Silva. Agora já não têm ilusões sobre a natureza e as realizações dos partidos, embora ainda não declarem desejar a abolição dos partidos que existem e não tenham pachorra para criarem um novo.
Eu posso dar-me por satisfeito por nunca me ter iludido com o regime e com os partidos. Para ter conseguido poupar-me a este desapontamento contribuiu bastante uma visita escolar à Assembleia da República: depois da lengalenga da professora a realidade era um deputado na tribuna a discursar sobre as florestas e as cadeiras dos colegas quase todas vazias, era os outros deputados ausentes e alguns, poucos, a fazerem figura de corpo presente, conversando, lendo os jornais, fazendo uma sesta. Aquilo tudo a lembrar-me a sala de aulas e eram os "representantes do povo" em todo o seu quotidiano esplendor de absentismo e desinteresse.
O regime, que nascera de maneira exemplarmente desastrada, cheio de ódio, reduzindo com altivez Portugal a um pequeno e muito dependente país, arruinando uma economia em crescimento vigoroso em nome da absurda prosperidade e bondade do socialismo, sustentava afinal o provérbio: quem nasce torto jamais se endireita. E de facto, o regime não se reformará enquanto os seus actuais protagonistas se alternarem no exercício impune da demagogia e da irresponsabilidade.
Enquanto PSD e PS obtiverem juntos cerca de 80% dos votos, não há que esperar do regime no futuro o que nunca ou apenas rara e acidentalmente ofereceu no passado. Haverá que pensar em substituí-lo ou continuar a aturá-lo.
Importa reconhecer que o regime, medíocre mas não completamente tolo, se esmera por ser duradouramente suportável, por força daquilo que consegue produzir e daquilo que entende tolerar: podemos criticá-lo com indignação e ironia, podemos atacar ou gozar os funcionários públicos que são bem pagos sem atrasos, graças à UE podemos receber um oportuno subsídio, temos centros comerciais com fartura, temos auto-estradas em toda a parte, temos recurso fácil ao crédito que oferece o consumo que contenta a alma, temos o euro que nos faz sentir europeus a sério, temos estatísticas que podemos orgulhosamente comparar com as dos desgraçados países africanos, temos imponentes obras públicas para admirar, temos a estudantada ignorante feliz por se licenciar, temos os comerciantes e os profissionais liberais contentes por praticamente não pagarem impostos, temos milhares de milagrosas empresas que nunca tiverem lucros e que continuam activas, e ainda temos as delícias do lixo televisivo e da paixão do futebol. Com tanto que temos, claro que nos podemos dar ao luxo de também ter uma classe política que não é mentalmente diferente da maioria acomodada que por hábito, sem a esperança de apreciáveis melhoras colectivas, a vai tediosamente elegendo, escudada na esfarrapada e inexacta alegação da falta de alternativa ao vigente. Na verdade, para ocupar e exercer o Poder há sempre alternativa: os militares e os milionários sabem-no.